Vencedor do Prêmio Sesc em 2008

Zé, Mizé, Camarada André (Sérgio Guimarães, Record, 2008)

Zé, Mizé, Camarada André (Sérgio Guimarães, Record, 2008)

O vencedor na categoria romance da edição 2007/2008 do Prêmio Sesc de Literatura foi Zé, Mizé, Camarada André, de Sérgio Guimarães.

Impressões

Zé, Mizé… é uma aula de História Geral de Angola que aborda tanto aspectos políticos recentes do país quanto suas causalidades e antecedentes mais remotos. Para construir uma narrativa cativante, o autor entremeou política com informações sobre a cultura e a sociedade composta pelas diversas etnias angolanas.

O pano de fundo inicial da obra é a década de 1970, período da independência em relação a Portugal e da primeira fase do poder do MPLA (Movimento pela Libertação de Angola). Discutem-se o contexto internacional da Guerra Fria e o lugar de Angola no jogo de poder entre as grandes potências do mundo bipolar: União Soviética e Estados Unidos. As relações entre Angola e potências periféricas como Brasil e Cuba também são exploradas para traçar um panorama dos anseios do povo angolano em seu projeto de um nascente país cuja História é mais antiga que a nossa. A obra encerra-se em 2002, quando findaram-se os 27 anos de guerra civil entre MPLA e UNITA (União Nacional para a Independência Total de Angola).

A década de 1970 e o começo dos anos 2000, porém, são apenas os extremos temporais didáticos de uma narrativa secular que remonta, para o Ocidente, ao século XV, quando os portugueses aportaram na costa africana e iniciaram o contato com povos que resistiram a sua presença até o começo do século XX, o qual encerra as guerras de colonização. Consolidada a presença portuguesa no território que hoje constitui Angola, ainda transcorreriam meio século de luta pela independência em relação a Portugal e mais duas décadas de guerra fratricida.

A forma como essa aula magna torna-se atraente é o grande mérito de Sérgio Guimarães, que soube ser didático e envolvente porque foi laborioso na composição de seus três personagens: Zé, jornalista brasileiro; Mizé (Maria José) e o camarada André.

Zé é o alter ego do escritor, um estrangeiro que tenta compreender Angola e muitas vezes é inconveniente ao confrontar a angolana Mizé com uma perspectiva crítica sobre as transformações políticas em curso. Mizé é a angolana entusiasta da revolução socialista que, ao final do livro, revê seu posicionamento e porta-se favoravelmente a reformas capitalistas das quais fora cética. O camarada André é a personificação do intelectual angolano que questiona a história narrada por Mizé e atua como contraponto entre a macroperspectiva acadêmica dos historiadores e analistas políticos e a microperspectiva individual do sujeito que interpreta a história à medida que a vivencia. Os três personagens são verossimilhantes em suas contradições internas e perspectivas em evolução.

Enredo, narrativa e estrutura da obra

Na maior parte do livro, o jornalista Zé dialoga com Mizé à procura de informações sobre o posicionamento dos angolanos acerca das transformações pelas quais seu país passa na década de 1970. Os diálogos são a ocasião para troca de conhecimentos que ultrapassam a política e tentam alcançar a própria constituição social e cultural dos angolanos. Nas conversas são apresentadas, por exemplo, a culinária e a medicina popular de Angola, bem como práticas tradicionais tais quais o dote e a iniciação sexual de povos específicos.

A opção do diálogo como técnica para desenvolver a narrativa é pouco frequente na literatura brasileira atual e foi bem sucedida nesta obra porque houve uma demarcação clara da orientação política dos interlocutores, o que, logo no momento inicial da leitura, permite ao leitor situar cada personagem sem a necessidade de intervenções de um narrador externo, tornando o texto ágil e fluido como em conversas reais. Os esboços psicológicos de Mizé, Zé e André delineiam-se de imediato para o leitor, permitindo uma empatia quase instantânea com cada um desses indivíduos, com os quais, em um primeiro momento, concordamos, como ocorre quando estamos abertos ao diálogo com alguém que desejamos conhecer, para, em seguida, questionarmos os vieses desses sujeitos, os quais não podem ser totalmente conscientes das motivações para seus alinhamentos ideológicos e perspectivas históricas.

 

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