Vencedor do Prêmio Sesc em 2013

O evangelho segundo Hitler (Marcos Peres, Record, 2013)

O vencedor na categoria romance da última edição do Prêmio Sesc de Literatura (2012/2013) foi O evangelho segundo Hitler, de Marcos Peres.

Impressões

O livro apresenta uma delirante teoria construída a partir de reflexões aparentemente bem embasadas, como a faria Jorge Luis Borges, por quem o protagonista é obcecado e cujo nome também leva. A teoria consiste em que, segundo o personagem principal de O evangelho…, o escritor portenho seria mentor do assassínio de judeus durante a Segunda Guerra Mundial e, por isso, deveria ser punido.

Mesmo tratando de uma intencional “teoria do absurdo”, o romance possui profundidade reflexiva e evidencia o cuidado do autor em construir a  linha argumentativa e a narração.

Enredo, narrativa e estrutura da obra

O anônimo Jorge Luis Borges, nascido em Buenos Aires, vive desde a infância um conflito secreto com seu famoso conterrâneo, coetâneo e homônimo: o escritor Jorge Luis Borges, nascido no começo do século XX e que passou boa parte da vida entre a Argentina e a Europa.

O protagonista ambicionou a carreira literária por toda a vida, mas possuía somente textos de má qualidade e um romance não publicado e escrito apenas em sua mente. Ainda assim, queria ter sua genialidade reconhecida e, para levar seu romance à realidade, decidiu vivê-lo em vez de escrevê-lo. O enredo trataria de uma vingança, como a vingança que, na vida real, ele pretendia perpetrar contra o famoso Jorge Luis Borges, que usurpara seu reconhecimento literário e a paixão da judia Raquel Spanier, amor da vida do anônimo Borges.

Borges anônimo e Borges escritor são dois polos de uma relação entre “duplos”: ao anônimo cabe o papel de executor (aquele que deve matar o responsável pela tragédia do século XX), ao passo que ao consagrado contista caberia o papel de mentor, construtor e mesmo de profeta da História do Século XX, marcada pela Segunda Guerra e pelo holocausto, para cuja ocorrência o famoso contista argentino teria contribuído ao escrever o conto “Três versões de Judas”, publicado na coletânea borgiana Ficções, de 1944.

Este conto questiona o papel de Judas como vilão na história do cristianismo e o coloca como herói que abriu mão da dignidade para concretizar o Plano divino da morte de Cristo. Ao longo do conto, Judas passa do vilão da cristandade para o herói e, por fim, para o próprio Deus abnegado, pois, segundo raciocínio lógico/teológico desenvolvido no conto, se Deus poderia ser qualquer um, então poderia ser também Judas.

A nova compreensão de Judas leva a um novo entendimento dos vilões da história atual, os nazistas, e transforma o holocausto em uma libação coletiva à procura do novo Messias: cada judeu morto pelo novo Judas poderia ser o novo Cristo e sua morte salvaria a humanidade – eis a conclusão do protagonista que, ao perder sua amada, questiona o próprio lugar na História e decide se transformar no vingador que punirá Borges, o culpado pelo genocídio mais conhecido do século XX.

A narrativa é perpassada pela questão do “duplo”, a qual, embora frequente na literatura, não se apresenta como lugar-comum nesta obra, pois, nela, o protagonista-narrador é que se coloca no lugar do “outro” e disputa com seu rival, o famoso homônimo Jorge Luis Borges, o lugar primordial. Em outras obras, é mais comum que o protagonista sinta-se sabotado pelo espectro de um “outro” subterrâneo (para citar um exemplo da literatura brasileira contemporânea, tem-se Feriado de mim mesmo, de Santiago Nazarian); em O evangelho…, ao invés disso, o protagonista é que é a sombra e busca destruir aquele que o ofuscou durante toda a vida.

A narrativa é em primeira pessoa e alterna o presente, Borges anônimo aos 80 anos viajando a Genebra para assassinar Borges, com o pretérito, que começa com o nascimento do Borges anônimo e bastardo; passa por sua primeira paixão, Raquel Spanier; sua primeira derrota intelectual para Borges, ainda no começo da adolescência, e vai até o insólito sequestro que o levou da Argentina para a Alemanha, onde ele colaboraia contra a vontade com uma seita ocultista que acredita nos pressupostos antissemitas do nazismo.

A narrativa da vida do protagonista é intercalada por capítulos de ensaios e reflexões acerca da obra de Jorge Luis Borges cujas epígrafes são extraídas do consagrado Harold Bloom (O Cânone Ocidental), de Umberto Eco (O Pêndulo de Foucault),  dos biógrafos Edwin Williamson e Paul Strathern e do sensacionalista Trevor Ravenscroft (A Marca da Besta), apresentado como referência acadêmica idônea. À moda borgiana, Marcos Peres vale-se da profusão de referências para ironizar o vício acadêmico de acumular citações como se estas, por si, assegurassem a validade dos argumentos apresentados.

Influências do autor: Jorge Luis Borges, conforme o próprio mote do livro indica, é a principal inspiração e influência de Marcos Peres neste livro.

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