Vencedor do Prêmio Sesc em 2011

Arthur Cecim (Record, 2011)

Habeas asas, sertão de céu! (Arthur Cecim, Record, 2011)

O vencedor na categoria romance da edição 2010/2011 do Prêmio Sesc de Literatura foi Habeas asas, sertão de céu!, de Arthur Cecim.

Impressões

A primeira impressão ao ler as linhas iniciais do livro foi de que eu poderia estar diante de mais um experimento literário tentando emular Guimarães Rosa, Manoel de Barros ou a pontuação de José Saramago. Habeas asas… começa desta forma:

“Ó: assim o céu olhava para todos, enquanto,

Lá embaixo:

O dia irradiava, Enquanto os urubus, estes filhos da terra, colocavam-se a longas corcovas e suas sombras derramavam-se correntes correntezas de águas escuras pelas fossas do chão suas impressões corriam paradas sem decisão sem decisão disparavam com o crescer decrescer do sol sob a inclinação das nuvens. Os peixes, sonhados, com os olhos de desistência, estampavam-se no solo dos restos.” (Habeas asas, sertão de céu!, p. 11)

Antes de consolidar minha impressão, porém, eu precisava ler o livro para saber se se tratava de um experimento desinteressado ou de um trabalho meticuloso e único, algo em que se percebe a labuta do escritor, sua força em limar o texto, revisá-lo e, por fim, entregar algo com qualidade. Em alguns momentos, reli passagens e notei que elas sempre ganhavam um sentido que eu não percebera, o que me fez perceber o esforço consciencioso do autor em cada construção. Acredito que, a cada releitura, perceberei novos sentidos, pois cada palavra do livro se presta a um propósito, não havendo jogos de palavra vãos. Este é um livro que não pode ser lido às pressas, não é um trabalho frívolo. Habeas asas… não é um livro gratuito, não é um experimento de emulação literária; pelo contrário, tem força própria e é inédito, não uma digestão de referências do autor. Ao longo da leitura e ao final do livro, acabei adotando minha segunda opinião (a de que o livro é um trabalho meticuloso e único). Habeas asas… é um livro feito para ser lido e relido, absorvido a cada palavra.

Seu tema principal, em minha opinião, é a liberdade e suas contradições e incompreensões. As contradições da liberdade dizem respeito ao eterno desejo de voltar para casa (como o urubu Tear das Vilas) quando se tem todo o céu à disposição, ao passo que as incompreensões são externas e dizem respeito à forma como a liberdade é percebida pelo outro: os urubus, livres, são os detentores da Paz, mas não são compreendidos assim pelos homens, que sempre os afugentam como se eles sinalizassem a morte e como se Paz, morte e liberdade não pudessem se relacionar.

Enredo, narrativa e estrutura da obra

As primeiras quarenta páginas do livro são descritivas e se concentram em cenas de um mercado litorâneo: esgoto corrente, lixo, peixes descartados e visados pelos urubus, homens bêbados e sem perspectiva. Sua vida é oscilante tanto pelo efeito de embriaguez do álcool quanto pela influência das ondas do mar perto de onde vivem, conforme demonstra o parágrafo estruturado de maneira visual, com separação entre as palavras de modo a lembrar ondas:

“Homens viviam às margens do lado daqui a almejar alvejar aquela ilha nata que se avisava a eles mas permanecia como sonho como ova nos pensamentos somente como uma                                 mente a ilha rasteira na água que corava com o sol e amanhava                                             os pensamentos iam e vinham longe como lama navegante                             de certo pensamentos rasos nossos da vida que se acolhe e se empurra amargada mas serena (…)” (p. 12-13)

“(…) ela [a vida] como filas de manhãs a se deitar nas manhãs mais camas um gole das cachaças mais brancas (…)” (p. 12-13)

Ainda:

“Viviam [os homens] do mesmo jeito que falavam. Falavam do mesmo jeito que viviam. Como as ondas batiam igual à forma que elas tinham ruído.

Cadê O meu Troco: o mercado e as mercadorias e os mercadores todos no puxa me puxa levado pela ida vinda cega da multidão. A vista visão do mercado era impressionante (…)” (p. 18)

Na página 43, depois dos fragmentos descritivos do mercado e dos mercadores, inicia-se a reflexão do urubu Precipício, narrador principal, e o tema da liberdade é introduzido:

“quando dos meus primeiros dias nada lembro, somente que me pus ovo do útero hemisfério de minha mãe. (…)

Minha mãe se demorava pelos becos do céu, admirada de tanta liberdade, desesperada por alimento também e pela liberdade de poder se desesperar com liberdade, eu ainda não tinha noção das alturas, eu divagava me coçando entre os ramos, mal sabia que a liberdade me acenava de longe, mãe maior. (…)

Minha mãe me disse: não temas voar, o seguro de voar é estar inseguro, que nada vem te amparar nem aparar nem parar. (…)

Para se voar não pode Haver terra segura.” (p. 43-50)

Após se apresentar, Precipício descreve outros urubus, o principal deles Tear das Vilas, ave hábil com as palavras e em referência a quem aparece pela primeira vez a expressão habeas asas em um poema visual cuja separação entre as linhas pode se referir à amplitude do voo de Tear:

“Seu habeas asas liberava o vento dos tempos

Nuvens cavalgavam senhoras de idade” (p. 79)

Devido à sua habilidade com as palavras, Tear das Vilas poderia ser o intérprete dos urubus:

“Eu poderia ser o arrimo de nós, dizia Tear das Vilas, das nossas palavras, mas os ecos do mundo caído [dos homens?] me prostram.” (p. 101)

Entre as páginas 80 e 94, a voz narrativa transita de Precipício para Tear das Vilas. A marca de sua voz é o uso constante de diminutivos (“vila vilinha”; “bem já alizinho”; “minha mãezinha” – p.81) e o conflito entre a liberdade e a necessidade de voltar para casa, para o lugar (a vila) onde nasceu:

“Desde então [desde que saiu de casa], sobrevivo nas minhas sombras celestes, sempre a querer de volta minha casa, minha paragem, meus primeiros ares, minha vila de urubu nos confins, meu diário, dia após dia.

Agora, rumo vagado pelos mundos, ando precipitado pelas imagens, cada nova paragem é um velório, um parir de sombras, uma parada danada nos altofins das casas, um compor, um compor-se de asas nas torres: meu destino é a seca do céu, é o passear nas praças do ar, fui feito de sertão.

Minha alma é um vilarejo.” (p.86)

Além das diferentes perspectivas entre Precipício (educado por sua mãe para ser livre) e Tear das Vilas (saudoso das origens), a história expõe o périplo dos livres: sua “busca pela busca” (o urubu sai do ninho para buscar o alimento, que é a “busca”); sua necessidade de fugir dos homens e, por fim, de fugir das duas aves soturnas (“os dois irmãos que se faziam solidão um pro outro, Vasto Rúbio e Casto Arrábio”, p. 131) que poderiam seduzi-los a abraçar a tristeza e o silêncio, que também significam solidão, pois essas duas aves jamais voavam com as outras e estavam eternamente pousadas sobre uma árvore seca: “pobres dois abutres um fazendo companhia pro outro, na verdade se fazendo solidão um pro outro” (p. 125).

Uma passagem significativa do livro discorre sobre os perigos da tristeza e da solidão, que seduzem e devem ser evitadas;

“A solidão quer encontrar quem a acolha, quem a tenha nos olhos, quem a contemple nos seus templos mais confinados, tempos mais confins.” (p. 124)

“A solidão é terra estranha, Precipício. Disse Tear das Vilas. Ela tem coração. Nos quer.” (p. 128)

A narrativa não é linear (não se atém a uma sequência temporal do enredo) e alterna narradores (os dois principais são os urubus Precipício e Tear das Vilas) e vozes narrativas: ora é explícito que um dos personagens é narrador, ora o discurso indireto livre serve como elemento de transição para a narrativa em terceira pessoa e, ainda, há estruturas em que o narrador utiliza a terceira pessoa para falar de si mesmo:

“E Precipício, eu, passava meio de lado, rasteiro, com passos baixos (…)” (p. 126)

Além dos urubus, há dois personagens humanos celestiais com expressiva participação no texto, Alamabo e Dolores, ambos referidos no gênero masculino, que observam os homens e os urubus e discorrem sobre o que pensariam estes, questionando-se se as aves suspeitariam de sua presença celestial. Esses personagens funcionam como uma perspectiva externa à perspectiva dos urubus, embora pareçam coincidir na percepção da importância e nobreza da ave desprezada e temida pelos homens.

O enredo é estruturado em fluxo contínuo, sem capítulos ou seções, apenas com sucessões de descrições de eventos, personagens, paisagens e reflexões dos urubus. O foco da obra está em apresentar a linguagem que teriam os urubus, para isso, o autor explora o simbolismo das palavras (tanto signos como significados) e a forma como elas são dispostas. As técnicas mais apresentadas no livro são:

– o espaçamento entre linhas e palavras (para transmitir a amplitude dos voos);

– a subversão de regras de pontuação (para realçar determinados elementos sintáticos) e de grafia (letras maiúsculas para substantivos comuns);

– o reforço de adjetivação (substantivo + adjetivo derivado, como em “correntes correntezas”, p. 11)

– o uso de verbo simples seguido de verbo com prefixação ou vice-versa, para adjetivar o movimento (“crescer decrescer”, “decorria corria”, p. 11).

Influências do autor

A obra transparece preocupações estéticas discutidas pela semiótica, conforme o excerto que descreve a forma como as aves soturnas ficavam pousadas na árvore:  “Em sinal não de cruz mas em sinal de sinal, de cruz significada. Ficavam a significar-se em cruz, a significar o significado.” (p. 120) Além desse trecho, ao comentar a obra, Antonio Vicente Seraphim Pietroforte utiliza jargão da semiótica: “entre os valores linguísticos, gerais e abstratos, que dão forma às línguas naturais (…), há uma instância discursiva (…) que orienta modos de ler determinados tipos de discurso” (orelha de Habeas asas…, 2011).

Quanto às semelhanças com outros autores, Guimarães Rosa e Manoel de Barros são as associações mais imediatas ao ler a obra, a qual, segundo Alice Ruiz, também se assemelha às de Mia Couto, Haroldo de Campos e Paulo Leminski.

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